Passei a
tarde e a noite de ontem arrebatado pelo texto de teatro de 1974 escrito por Oduvaldo
Vianna Filho, o Vianinha. Reza a lenda que Vianinha começou a escrever ‘Rasga...’
já debilitado por conta de um câncer no pulmão e ditou as últimas páginas do
texto. Morreu aos 38 anos, logo depois de terminar a obra. E ‘Rasga Coração’, é
tão intenso que parece que Vianinha disse tudo o que queria dizer e esse
processo culminou com sua morte.
Exageros à
parte, trata-se de uma realização soberba. Não apenas uma peça de teatro, mas
uma realização por tudo que é dito e alcançado na proposta do autor. A versão
que eu li possui três citações antes da seguinte introdução:
"Somos
profissionais
não vamos
agredir
agredir não
é fácil, mas transfere responsabilidades
viemos aqui
cumprir a nossa missão
a de
artistas
não a de
juízes de nosso tempo
a de
investigadores
a de
descobridores
ligar a
natureza humana à natureza histórica
não estamos
atrás de novidades
estamos
atrás de descobertas
não somos
profissionais do espanto
para achar
a água é preciso descer terra adentro
encharcar-se
no lodo
mas há os
que preferem olhar os céus
esperar
pelas chuvas"
Entendem onde quero chegar? O tamanho do lirismo e a força desta obra? E o texto em si sequer começou! Ainda nesta versão, há um
prólogo inédito com dois fragmentos onde Vianinha já começa rompendo com o
ritualístico e defendendo o teatro como lugar de contemplação e o artista como o
profissional que apresentará esse processo:
"Um teatro é o único lugar em que estamos presentes não estando
em que participamos dos acontecimentos que entretanto só acontecem
porque não estamos neles
É uma sensação doce demais, descoberta dos gregos quando descobriram
que o destino depende da maneira como entendemos"
Adotando muita ironia, Vianinha despe-se de vaidade para
assegurar que sua ruptura inicial, começando a peça de modo ‘desavisado’ não
tem nada de original, os gregos a inventaram há muito tempo.
E todo esse jogo é apenas o começo de um espetáculo em que o
autor passeia pela História do Brasil (da Revolução de 30 à Ditadura Militar)
trazendo através do conflito de gerações, os pontos de vista de pai e filho em questões
políticas e sociais, fazendo um amargo retrato das expectativas e desilusões
(em especial da classe média brasileira) através dos tempos.
Usando como centro Custódio Manhães Jr., o ‘Manguari
Pistolão’, Vianinha cria um protagonista ativista político, simpático a ideias
de esquerda. ‘Herói anônimo’, como é considerado por outros personagens por sua
militância, Manguari possui um grande conflito de ver-se diferente do filho, em
quem ele não se reconhece pela suposta falta de interesse do jovem em política
ao mesmo tempo em que se vê tomado pelos mesmos impulsos conservadores que seu
pai teve antes dele.
Extremamente político sem nunca ser panfletário, repleto de
tipos incríveis como Lorde Bundinha, ‘Rasga Coração’, além de uma aula de
História do Brasil – deveria ser estudado nos colégios – é poesia pura. Um
texto honesto, revelador, transformador, ousado, extremamente arrojado, com uma
proposta de encenação moderníssima com suas idas e vindas no tempo, uma
verdadeira obra-prima.
“Se tu queres ver a imensidão do céu e mar
refletindo a prismatização da luz solar
Rasga o Coração, vem te debruçar
sobre a vastidão do meu penar”
Catullo da Paixão Cearense — Anacleto Medeiros
música “Rasga o Coração”