Encruzilhada

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quinta-feira, 30 de maio de 2013

Comentário texto 'Rasga Coração', de Oduvaldo Vianna Filho

 Quero escrever sobre ‘Rasga Coração’. Pelo poder que exerceu sobre mim. E pelo poder que pode exercer sobre você.

Passei a tarde e a noite de ontem arrebatado pelo texto de teatro de 1974 escrito por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha. Reza a lenda que Vianinha começou a escrever ‘Rasga...’ já debilitado por conta de um câncer no pulmão e ditou as últimas páginas do texto. Morreu aos 38 anos, logo depois de terminar a obra. E ‘Rasga Coração’, é tão intenso que parece que Vianinha disse tudo o que queria dizer e esse processo culminou com sua morte.

Exageros à parte, trata-se de uma realização soberba. Não apenas uma peça de teatro, mas uma realização por tudo que é dito e alcançado na proposta do autor. A versão que eu li possui três citações antes da seguinte introdução:

"Somos
profissionais
não vamos agredir
agredir não é fácil, mas transfere responsabilidades
viemos aqui cumprir a nossa missão
a de artistas
não a de juízes de nosso tempo
a de investigadores
a de descobridores
ligar a natureza humana à natureza histórica
não estamos atrás de novidades
estamos atrás de descobertas
não somos profissionais do espanto
para achar a água é preciso descer terra adentro
encharcar-se no lodo
mas há os que preferem olhar os céus
esperar pelas chuvas"

Entendem onde quero chegar? O tamanho do lirismo e a força desta obra? E o texto em si sequer começou! Ainda nesta versão, há um prólogo inédito com dois fragmentos onde Vianinha já começa rompendo com o ritualístico e defendendo o teatro como lugar de contemplação e o artista como o profissional que apresentará esse processo:

"Um teatro é o único lugar em que estamos presentes não estando
em que participamos dos acontecimentos que entretanto só acontecem
porque não estamos neles
É uma sensação doce demais, descoberta dos gregos quando descobriram
que o destino depende da maneira como entendemos"

Adotando muita ironia, Vianinha despe-se de vaidade para assegurar que sua ruptura inicial, começando a peça de modo ‘desavisado’ não tem nada de original, os gregos a inventaram há muito tempo.

E todo esse jogo é apenas o começo de um espetáculo em que o autor passeia pela História do Brasil (da Revolução de 30 à Ditadura Militar) trazendo através do conflito de gerações, os pontos de vista de pai e filho em questões políticas e sociais, fazendo um amargo retrato das expectativas e desilusões (em especial da classe média brasileira) através dos tempos.

Usando como centro Custódio Manhães Jr., o ‘Manguari Pistolão’, Vianinha cria um protagonista ativista político, simpático a ideias de esquerda. ‘Herói anônimo’, como é considerado por outros personagens por sua militância, Manguari possui um grande conflito de ver-se diferente do filho, em quem ele não se reconhece pela suposta falta de interesse do jovem em política ao mesmo tempo em que se vê tomado pelos mesmos impulsos conservadores que seu pai teve antes dele.

Extremamente político sem nunca ser panfletário, repleto de tipos incríveis como Lorde Bundinha, ‘Rasga Coração’, além de uma aula de História do Brasil – deveria ser estudado nos colégios – é poesia pura. Um texto honesto, revelador, transformador, ousado, extremamente arrojado, com uma proposta de encenação moderníssima com suas idas e vindas no tempo, uma verdadeira obra-prima.

“Se tu queres ver a imensidão do céu e mar
refletindo a prismatização da luz solar
Rasga o Coração, vem te debruçar
sobre a vastidão do meu penar”
Catullo da Paixão Cearense — Anacleto Medeiros
música “Rasga o Coração”