Encruzilhada

Encruzilhada

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Atolados; ou às vezes a gente tem que ser HÓMI


Atolados; ou às vezes a gente tem que ser HÓMI.




‘Atolamos’. A primeira vez que eu disse foi com um sorriso no rosto, brincando com a possibilidade. Em seguida, percebi que o carro realmente não se movia, nem pra frente e nem pra trás, não importava o quanto eu acelerasse ou mexesse o volante. E aí, veio o sinal. Não sei se tem isso em todos os carros, mas ali estava, no painel do Ford Fusion alugado para o fim de semana, a luz acesa com o ícone de um carro atolado. Uma miniatura da gente agora.
Uma vez constatado o atolamento, a primeira coisa a não se fazer é exatamente o que eu fiz. Acelerar e tentar de novo e de novo, teimoso e teimoso, ignorando o sinal da natureza de que as rodas dianteiras rodam sem sair do lugar, mergulhadas que estão – agora cada vez mais – na lama do estacionamento desta vinícola. Em uma situação como essa, sou uma criança. Fui criado na cidade, mais precisamente em Laranjeiras, Rio de Janeiro, e mais precisamente ainda num apartamento. Não numa casa, não num play, num apartamento. Nunca troquei um pneu, não sei direito onde fica o radiador nem com quanto tempo é preciso trocar o óleo. Sou, muito vergonhosamente, o que se acostumou a chamar de ‘criado-a-leite-com-pera’ – embora seja mais para leite-condensado – e conhecido ainda como ‘cintura-lisa’ ou ‘faixa-branca’. ‘Mete a mão aí’, ela me diz. Eu meto. E besunto minha mão na lama tipo argila abrindo espaço para um dos pneus.
Dois jovens rapazes americanos chegam para ajudar. São funcionários da vinícola, vinte e poucos anos, um mais fortinho/gordinho, outro magricela, ambos com a mesma roupa: calças cáqui e camisas azul xadrez. Nossa primeira tentativa é óbvia: empurrar a frente do carro. Ela engata a ré. E nada. Tentamos do outro lado, empurrar pra frente com a primeira marcha engatada. Nada. E minha mão agora está gelada por causa da lama seca. Afinal, estamos no estado de Nova York e há alguns dias atrás esse chão estava coberto de neve. Joe e Brad saem e retornam com papelões. ‘O carro precisa de uma superfície lisa pra aderir e sair da lama’, Joe diz. Ele não é leite-com-pera. Jogador de futebol na faculdade, deve ter tido aulas de carpintaria no high school e provavelmente é nascido e criado nesta parte mais rural do estado. Parece entender do que fala apesar de ter confirmado que nunca tinha visto isso acontecer antes. Às vezes, eu queria ser como Joe.
Calçamos os pneus dianteiros com os papelões, mas não funciona. O carro não se move, tampouco sobe no papelão. Já de mãos limpas, lembro-me do episódio do Chapolin em que ele ajuda um trio a bordo de um caminhão atolado a atravessar uma fronteira. Se você é fã lembra que pra resolver o problema é preciso uma pedra e um toco de madeira pra fazer uma alavanca. Na falta da pedra, pego outro toco de madeira, dos tantos estirados na frente dos carros do estacionamento. A alavanca fica bonita, uma pra cada roda dianteira. Mas nada acontece, não há espaço suficiente entre o para-lama – nunca um nome tão apropriado – e o chão pra alavanca fazer efeito. Maldito Chapolin. E agora estou cheio de farpas na mão.
‘Vocês tem seguro?’, Brad pergunta. Brad é o tipo magro, tranquilo, um cara legal. Provavelmente curte quadrinhos, ficção científica e Pearl Jam. Em outra vida, poderíamos engatar um bom papo. ‘Sim, cobertura completa’, respondemos. Joe sai para buscar sua caminhonete e volta com uma corda. Brad e ele agora examinam como podem improvisar um reboque sem destruir nosso carro alugado-atolado. Uma peça do porta-malas parece ser a solução. E lá vamos nós. Corda amarrada, Joe puxa a caminhonete, que puxa o Ford Fusion – engatado por ela. Brad vigia pra ver se o carro se despedaça, eu empurro sozinho. E a corda se rompe. ‘Era fraca demais’, Brad atesta.
Me pego num momento imaginando se em uma hora estarei fora dali, problema resolvido, relembrando e comentando toda a situação. É um pensamento que sempre me vem em momentos de crise. Retomo então uma sugestão que tinha vindo à tona mais cedo e acabou esquecida. ‘Vocês tem alguma pá aqui?’. Eles tinham. Duas. Brad e eu cavamos nas rodas dianteiras abrindo um espaço maior, nivelado com os pneus atolados para o carro pegar força e sair do buraco. Nós e Joe nos preparamos para empurrar. A hostess da vinícola, chega para ver como andam as coisas. Joe pede que ela escore os tocos de madeira com o pé, nos apoiando enquanto empurramos o carro pra trás, marcha ré engatada. O carro anda um pouco, mas não o suficiente para desatolar. Tentamos a mesma manobra algumas outras vezes, sem sucesso. A moça nos ajuda em uma delas, mas depois recua. ‘Essas botas são caras’, ela diz, antes de ir embora com o pretexto de ‘atender um telefonema’. Joe e Brad estão frustrados, camisas xadrez pra fora das calças cáqui, agora manchadas. Eu mexo na minha mão, cheia de farpas. Minha calça está rasgada em uma das pernas por conta do esforço de empurrar o carro. Meus sapatos estão afundados na lama. Minha roupa, suja de terra. Numa temperatura de 5 graus, estou suando. ‘Vou ligar para o reboque’, ela me diz, para logo em seguida pegar o celular e o número do seguro. Os rapazes e eu fomos derrotados.
Neste momento, uma voz começa a ecoar na minha cabeça. ‘Estamos atolados, presos aqui, e você preocupado com essas farpinhas na mão? Seja homem. Sua mulher vai chamar um homem de verdade com um caminhão reboque gigantesco pra resolver o problema que você não consegue resolver sozinho’. Apanho então a pá e começo a cavar. Crio mais espaço para a roda dianteira. Faço o mesmo para a roda traseira enquanto Brad cuida do outro lado do carro. ‘Vamos criar um caminho pros pneus, nem que tenhamos que cavar toda essa vaga’, eu digo. É uma sensação especial essa de usar uma pá na terra. Você finca a bicha no chão, reforça o golpe com o pé e depois arrança o maior pedaço de terra possível. E a cada talagada que retiro do gramado me sinto mais forte e confiante. O simples ato físico parece emular um tipo de plantar, construir ao mesmo tempo em que se destrói algo, numa superfície manipulável o bastante para ser destruída e recomposta em sequência cíclica.

Ela desliga o telefone. O reboque já está a caminho. Joe retorna com mais papelões e duas tábuas quadradas de madeira. Cercamos todas as rodas desta vez, tábuas nas rodas dianteiras, papelão nas traseiras. E sem precisarmos da hostess, fincamos as pás para escorar os tocos de madeira que apoiam nossos pés enquanto empurramos o carro. Ela engata a marcha ré. E nós empurramos. Podemos sentir as rodas fazendo o esforço pra sair do buraco, quase na inclinação que nos separa da liberdade. Os pneus também fazem um cheiro de queimado pela fumaça do atrito da borracha com a madeira. Estávamos quase lá, mas o chão vence mais uma vez. Numa última tentativa, ela leva o carro o máximo pra frente que pode. Nós entendemos que podemos guardar forças e só empurrar quando as rodas encontrarem o limite do buraco. Vamos no três. ‘One, two, three’. Eis que conseguimos e o carro sai, glorioso, de ré por cima da mistura de lama com grama à beira do vinhedo. Eu grito, extasiado, alegre como um moleque comemorando um gol no recreio do colégio. Abraço Joe e Brad e comemoramos juntos. ‘Cancela esse reboque porque é assim que se faz!!’, eu grito. Eles riem. Compartilhamos a alegria da vitória juntos, recolhendo os destroços do nosso triunfo. A corda arrebentada, os papelões no chão de lama, as tábuas, os tocos de madeira. Lavo minhas mãos e entro no carro. Estou aliviado e me sinto vitorioso. De alguma forma tosca, acho que sou mais homem porque passei por isso. E um sentimento de aventura ainda ecoa dentro de mim enquanto me pego no banheiro, mais tarde naquela noite, traçando mentalmente as primeiras linhas desse texto enquanto tiro as farpas da minha mão.