Encruzilhada

Encruzilhada

sábado, 27 de dezembro de 2014

Salgado, Wenders e o tempo


Texto originalmente publicado no ORNITORRINCO

“O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; (...) rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo (...), brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira (...); pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas (...).”

Cito Raduan Nassar em 'Lavoura Arcaica' para falar de Sebastião Salgado. E Wim Wenders. Dois homens que sabem brindar com o tempo.

Acabo de assistir ao documentário ‘O Sal da Terra’, sobre Sebastião Salgado, dirigido por Wenders e Juliano Ribeiro Salgado, filho do homem. E sinto que algo mudou em mim.

Acredito profundamente que a arte transforma. E que alguns filmes podem mudar você. E se não você, alguma coisa em você. Lembro de sentir algo assim quando assisti pela, sei lá, quinta vez, ‘2001 – Uma Odisseia no Espaço’. Depois de ter tentado a experiência algumas vezes quando novo, agora estava mais maduro e mais perto de arranhar a compreensão da obra. Algo semelhante aconteceu com ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’. ‘Melancolia’, de Lars Von Trier, que assisti praticamente sozinho numa salinha de Santa Teresa, mudou minha forma de ver o cinema moderno. E o próprio Wenders ganhou um lugar especial na minha memória quando me apresentou Pina Bausch mais de perto em seu ‘Pina 3D’. Lembro do mestre Adriano Garib aos berros nos ensaios de uma peça na escola de teatro:

- Vocês querem ser artistas, vão ver ‘Pina 3D’! Tá pensando que ser artista é mole? É trabalho, trabalho e trabalho!

Há muito trabalho em ‘O Sal da Terra’. E há muita coisa especial. Há a história do jovem criado em fazenda que vira economista na cidade, e se descobre fotógrafo, artista. Há a história de Sebastião e Lélia, parceiros de trabalho e de vida, amantes há quase 50 anos. Há a história do filho que sempre viu no pai - ausente em viagens pelo mundo - um aventureiro e que agora pode segui-lo numa de suas aventuras. Mas todas essas pequenas histórias são pinceladas do tema principal: o trabalho de Sebastião Salgado.


Wim Wenders e Sebastião Salgado


Pessoalmente, acho um alento ver um filme sobre o trabalho de uma pessoa, ou um que se apropria da arte do artista para criar um tributo em vez de se limitar jornalisticamente à história do biografado. Alguns bons exemplos de ousadias narrativas bem sucedidas me vêm à cabeça: a ficção ‘I’m Not There’, sobre Bob Dylan; ‘Jards’, filme-ensaio de Eryk Rocha sobre Jards Macalé; o fantástico filme-poema ‘Elena’, de Petra Costa; ou o já citado ‘Pina 3D’.

Em ‘O Sal da Terra’ há vislumbres da vida pessoal do brasileiro. Mas, focando no trabalho de Salgado, Wim e Juliano evitam a armadilha personalista. E o fotógrafo escapa sem ser mitificado pelo projeto. Despido de valores e signos publicitários como consumo, dinheiro, fama e sucesso, este filme mergulha na reflexão e na contemplação. Por isso somos capazes de admirar profundamente a arte de Sebastião sem sermos oprimidos pela figura dele.

E acabamos então conhecendo mais do retratado, mas o fazemos através do que importa, no fim das contas, em se tratando de um artista: sua obra.

Através de suas fotos, acompanhamos a jornada de um exilado em sua saudosa América do Sul, e as andanças de um homem ávido por conhecer o seu próprio país, em travessia pelo nordeste brasileiro. Ou a sua gente, habitantes de desertos de fome da África, fábricas do leste europeu e dos confins do planeta ainda intocados. Sempre numa busca pelo registro da condição humana. E indo da desilusão com a nossa espécie ao ressurgimento da esperança no reencontro com a natureza.

Uma coleção poderosa de retratos da humanidade, por vezes, em sua face mais cruel. Miséria, fome, violência. Existe uma discussão sobre se a obra de Sebastião estetiza a miséria, esvaziando a força das situações ali representadas com seus registros em preto e branco, quadros bem compostos e jogos de sombra e luz. Acho um debate relevante, mas tendo a me posicionar ao lado de Salgado.

E, de tão maravilhado, quase chego a não acreditar no que vejo, no momento em que ele registra os índios da tribo Zo’é, em cores de pele morena, folhas verdes e tinta vermelha de urucum como nos mostram as lentes de Wenders e Juliano.

Salgado é um andarilho com muito para contar, muito para mostrar. Alguém que escreve com a luz, como a inspirada abertura nos conta. E é emulando o tempo do próprio fotógrafo, homem de paciência, fala calma, e portador de uma energia pacífica que chega a passar para o lado de cá da tela, que Wim Wenders nos apresenta a seu trabalho.

Talvez seja cedo para dizer que algo mudou em mim depois desse filme. Mas o sentimento está lá.

Tudo a seu próprio tempo.

Edição
Gabriel Pardal

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Poema da lua nova na nova York

Esta noite a lua se incendeia no céu
Esfumaçada, se desfaz, entre a escuridão
Nua lua nova de verão;
Mas não na nova York, meu irmão,
Que não tem lua e não tem céu
Só tem chão
Que o céu foi arranhado
E a lua se apagou
E refletem-se no lago
Que a terra acordou
Gigantes de pedra, tão cheios de luz
Que o homem criou.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

'O Abutre' é mais do que sobre jornalismo

Antes de tudo, vá assistir ‘O Abutre’ (Nightcrawler, no original). É uma pérola, uma preciosidade e, provavelmente, por ser um lançamento menor numa época de arrasa-quarteirões de fim de ano e candidatos aos prêmios da temporada, corre o risco de ficar em cartaz por pouco tempo e passar quase despercebido.

O título, possivelmente sem intenção direta, remete ao clássico de Billy Wilder, ‘A Montanha dos Sete Abutres’ (Ace in the Hole, no original), com Kirk Douglas no papel de um jornalista que explora ao máximo – com consequências trágicas – a história de um homem preso em uma mina.

De fato, não é de hoje que o jornalista – em especial o sensacionalista – carrega consigo a analogia de um abutre em busca de carniça. ‘Se tem sangue, é notícia’, diz aqui o personagem de Bill Paxton, um veterano cinegrafista. A editora Nina (Rene Russo), em outro momento, descreve: ‘Imagine o nosso jornal como uma mulher aos gritos, com a garganta cortada, correndo pela rua’.
‘O Abutre’ segue Louis Bloom (Jake Gyllenhaal), um determinado jovem que vive sozinho em Los Angeles e não mede esforços na busca por um trabalho. Inicialmente um ladrão, ele acaba se lançando como cinegrafista freelancer atrás dos furos de reportagens sangrentos da madrugada.

Numa primeira leitura este pode parecer um filme sobre jornalismo moderno, mídia e os limites na busca pela notícia e a audiência. Mas acredito fortemente que há um conteúdo muito mais complexo e profundo do que o apresentado em primeiro plano por Dan Gilroy (roteirista já cinquentão, estreando aqui na direção em grande forma). Penso que este é um retrato quase satírico sobre ambição corporativa, o sonho americano, e no grande espectro, sobre a pior face do capitalismo.
Louis Bloom tem a determinação e visão que muitos chefes gostariam de ver em seus empregados. E conforme cresce na profissão, seu discurso se parece cada vez mais com um gestor de uma grande empresa. Autodidata, ele aprende rápido e tem na internet sua fonte de conhecimento. É dali que vem toda sua retórica corporativa. ‘Você pode encontrar tudo que quiser se procurar o suficiente’, ele diz.

No decorrer da narrativa, Louis de certa forma se torna um empresário, mergulhando num jogo de oferta e demanda, e transcendendo a discussão ética da sede pela tragédia alheia ao não enxergar problemas em invadir a casa de uma família que acaba de passar por um tiroteio ou até mesmo manipular a cena de um acidente ou de um crime. Tudo pela valorização do seu produto final -com sabotagem da concorrência no caminho. Em alguns anos de jornalismo, guardadas as devidas proporções, posso dizer que vi coisa parecida. 

Com os competidores fora do caminho e sua empresa em crescimento, Louis adota estratégias de marketing, elimina o intermediário, valoriza a sua marca. Cria um nome para sua empresa, exige que suas imagens sejam creditadas, que seu nome seja repetido pelos âncoras. Ele sabe o valor do seu produto e aprende a barganhar e maximizar os lucros por isso.

As cenas de entrevista de emprego e negociação de aumento de salário, ambas entre Louis e seu assistente, Rick (Riz Ahmed), poderiam ter saído de um drama corporativo. A impressão crescente é realmente de que esta não é uma narrativa realista, e sim um sinistro e sombrio comentário político e satírico do sonho americano de sucesso financeiro e ascensão social. Um sentimento acentuado pela fotografia de Robert Elswit (parceiro do cineasta Paul Thomas Anderson) que, como apontado pelo crítico Anthony Lane, da The New Yorker, apresenta uma Los Angeles que tem um quê de David Lynch, “onde a escuridão cai e mesmo os dias parecem sempre noite”.

Minha teoria é corroborada ainda pela música deslocada de James Newton Howard, que de início incomoda por sua dissonância em relação ao tom do filme, mas no decorrer da história se encaixa perfeitamente na proposta cínica de Gilroy; e pela fala do protagonista que fecha o frenético e fantástico clímax, explicando o que já entendemos pela oportunidade de uma última pérola do discurso empresarial. Discordo apenas da necessidade da cena final de interrogatório. Acho que o filme poderia ter se encerrado minutos antes de forma mais concisa e eficiente.

Toda a estrutura afiada de ‘O Abutre’, no entanto, não funcionaria sem um bom ator no papel central. E Jake Gyllenhaal merece todos os aplausos aqui. Admiro atores que tomam caminhos inesperados e tem sido interessante acompanhar os últimos passos de Gyllenhaal. Depois de construir desde jovem uma carreira equilibrada entre projetos maiores e filmes independentes, de uns anos pra cá Gyllenhaal alterna passagens pelo teatro com ótimos trabalhos no cinema americano, se colocando a serviço de jovens e novos diretores e associando-se a um dos mais arrojados realizadores da atualidade, o canadense Denis Villeneuve, responsável pela obra-prima ‘Incêndios’ e com quem Gyllenhaal filmou ‘Os Suspeitos’ e o sensacional ‘O Homem Duplicado’, um dos melhores filmes deste ano.

Em ‘O Abutre’, na caracterização física, no olhar, na postura, no tom de voz e no padrão de fala, ele entrega uma atuação que balanceia sociopatia e carisma. Louis Bloom cruza muitas linhas, não tem limites ou escrúpulos que o parem em sua escalada. Mas como o Coringa em ‘O Cavaleiro das Trevas’, não conseguimos desviar o olhar, fascinados que estamos para descobrir até onde ele vai e do que mais é capaz. E isso é mérito de sua performance.
Outro destaque a ser dado é para o ator Riz Ahmed que, no papel do assistente Rick, divide a cena com o protagonista de igual pra igual em todos seus momentos, com muito menos material à sua disposição.

No fim das contas, o sistema engole tudo. Da jornalista cinquentona, já aposentada do vídeo, que faz de tudo para manter-se no pouco mercado que ainda lhe resta, ao jovem sem-teto que precisa de um trabalho, ainda que moralmente condenável e mal remunerado. Louis Bloom, por outro lado, encontra seu lugar. E sua falta de humanidade, assim como seu modo de pensar e agir no decorrer de toda sua jornada não me deixam dúvidas. Está tudo no olhar: ele e o capitalismo foram feitos um para o outro.

Texto originalmente publicado no Diário do Centro do Mundo